quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

A verdade é Tristeza Profunda.

A verdade é que acabei de ler no jornal uma notícia que me deixou devastada.
A mãe saiu de casa para dar um telefonema.
Quando voltou percebeu que a filha de 11 MESES chorava além no normal.
Perguntou o que aconteceu mas a menina não respondeu.
Quando foi trocar suas fraldas, porém, ela percebeu uma lesão no ânus da garota.
Ao levá-la para o hospital descobriu que a criança havia sido estuprada.
O pai confessou ser o autor do crime.
E ela o denunciou a polícia.
...
A verdade é que nem tentando eu consigo sequer esboçar a dor dessa mãe, e menos ainda a da filha.
Se esivesse no lugar da mãe só consigo imaginar que me partiria em um milhão de pedacinhos.
E que nunca mais ia conseguir deixar a minha filha sozinha com ninguém, enquanto ela não crescesse e aprendesse no mínimo, a correr bem rápido, a bater bem forte e quem sabe manipular uma arma.
E que quando a fragilidade do momento passasse com certeza eu mataria o desgraçado.
Posso bater na mesma tecla. Dizer de quem eu acho que é a culpa N vezes. Não vai mudar a dor da mãe.
Não vai mudar o que a criança passou.
Mas talvez mude a mente de alguém que estiver lendo o meu texto e ainda não tenha esboçado, em qual artigo, em qual gênero e em qual pronome começam noventa por cento das manchetes de jornal que anunciam crimes hediondos.
...
A verdade é que hoje eu lamento por cada garota que tem que passar por isso.
E por cada mãe que não sabe, ou não quer enxergar quem é o pai dos seus filhos.
O homem que divide o teto e a cama com elas.
E eu lamento saber que isso não vai para de acontecer.
...
A verdade é que a tristeza é profunda.
E eu espero que essa garota, assim como tantas outras vítimas desse tipo, bastante frequente, de comportamento masculino, fique bem, do jeito que puder ficar.
E que ela , pela pouca idade, consiga bloquear da memória a extrema violência que sofreu antes mesmo de ter completado o primeiro ano nesse mundo, nessa sociedade, nesse planeta.
E eu lamento por saber, que a tristeza e o mal estar que eu estou sentindo agora, que parecem até mesmo maiores do que eu , não podem se comparar a dor dessa, e de tantas outras meninas.
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Em 2008 mais de 19.000 mulheres registraram ocorrência de estupro no Brasil.Contando com as que não registraram e com as filhas pequenas que as mães não descobriram ou não quiseram ver... Esse número tem propensão a triplicar.
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quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

AMARELO


Qualquer objeto, pintura, roupa, qualquer resquício dessa cor me lembra ela. A luz do sol, a tarde poeirenta e as abstrações agora guardadas e mim.
Se pelo menos eu pudesse matar a saudade. Agora... Décadas depois.
Mas para mim, nessa idade, sobrou o único alento dos velhos.
A lembrança.

... 1

Seus olhos no inicio esboçavam uma pálida cor de mel. E já na infância remota davam um aspecto estranho ao rosto fino encoberto por pele escura. As retinas eram circuladas por algo acinzentado que foi crescendo e tomou toda a sua visão, deixando seus olhos esbranquiçados e salpicados de uma pigmentação um pouco mais escura, como cinzas espalhadas em uma tempestade de neve.
Acho que eu nunca entendi ao certo que doença ela tinha. Algo degenerativo, eu acho.
A questão é que com a idade de dezessete anos ela já vivia no escuro.
Eu a encontrava nos jardins do fundo de sua casa, perto do quiosque de madeira com paredes que naquela época já estavam se deteriorando em mofo e cupins.
Suas roupas sedosas e multicores contrastavam com a grama alta e sem brilho que não era aparada há meses.
Alguns metros, na lateral, porém ocultada pelas grandes árvores do pátio, ouvíamos os ruídos de Shainty que, naquela época passava os dias na beira da piscina consumindo destilados e fumando cigarros de cravo. Ela tinha a pele naturalmente mais escura que a de Nahema, e mesmo assim era capaz de passar horas a fio no sol, sem nada fazer além de beber e fumar, o que a deixava ainda mais morena.
A história dela é do tipo que só vale a pena ser contada com grandes doses de minúcia, logo não pode ser relatada agora. Limito-me por enquanto, a apenas dizer que era extremamente difícil enxergar nela, algo além da sua aparência. Ela era uma mulher linda, e tinha aflorada nela uma sensualidade natural capaz de persuadir a maioria das pessoas a muitos atos não pensados.Não era possível concebê-la como um ser com sonhos, ambições e idéias. Para a maioria das pessoas, assim como para mim durante aqueles anos, ela era apenas terrivelmente bela.
Quando ela morreu daquele jeito terrível, eu, como a maioria das pessoas, não senti pena dela em si ou da sua dor. Mas lamentei por sua beleza perdida, que viraria comida de bichos abaixo da terra. No seu funeral, que reuniu em maioria vizinhos curiosos, apenas se ouvia falar frases como: “pobrezinha, e tão linda que era”, ou “uma pena ter morrido, tão bonita meu deus!”. Mas todos sabiam, e comentavam, que antes sequer que qualquer pessoa pudesse imaginar que ela morreria daquela forma, ela já estava arruinada.
Mas como disse, não devo falar de Shainty agora. Ainda é o momento de Nahema.

... 2

Ainda na grama com Nahema eu perguntava:
- E o verde?
- Sim, Stella, eu ainda me lembro como é. – Ela falava levando as mãos às têmporas me indicando que eu a aborrecia.
- Mas lembra assim, de tudo, cada tonalidade cada coisa que é verde? – Insistia eu.
- Que foi verde. – Ela corrigia.- As coisas não são mais de cores Stella, já te disse. E além do mais as cores não tem mais importância agora que minha mente não precisa mais percebe-las ou interpreta-las. Isso abre espaço na minha mente para no mínimo cem mil novas memórias, ando me lembrando também de coisas de quando era criança, que eu já havia esquecido. – Ela disse.
Mas eu estava muito absorta nas cores para prestar a devida atenção na última coisa que ela havia dito.
- Não acredito. – Eu dizia. Você não as esqueceu, estou certa de que elas ainda estão aí, como abstrações. Diga-me Nahema, qual o verde que você se lembra?
- Eu nunca gostei dessa cor. Não me incomodaria esquece-la, isto é, se você deixasse. – Ela respondia virando a cabeça na direção que eu estava, e eu, olhando fundo naqueles olhos tempestuosos ainda não conseguia identificar qual expressão teriam se estivesse bons.
- Então me fale de outra cor. – Eu insistia. – E o amarelo? Vai me dizer que também não gosta dele, você está usando amarelo agora. Mesmo sem poder enxergar você escolheu essa saia hoje. Não sabia que a estava usando?
- Claro que sabia. – Ela dizia. – Eu já havia decorado tudo, antes que meus olhos se fossem. Todos os caminhos, todos os degraus, e as texturas e a COR das roupas e os formatos das coisas.
- Então Nahema... Fale da abstração, como você se lembra do amarelo?
- Lembro da cor, Stella. Perdi a capacidade de enxergar a muito pouco tempo para não me lembrar exatamente de como é. Talvez me lembre para sempre. Mas não acho que saberia explicar adequadamente como é uma cor. É o tipo de coisa que você apenas enxerga e sabe o que é. Eu poderia dizer, como definição, que é uma cor primaria, que é resultado da sobreposição do verde e do vermelho e que certamente pode ser visualizada a certa altura nas faixas do espectro de cores. Mas isso não seria suficiente para você né?
Fiz que não com a cabeça, gesto que obviamente ela não pode ver. Mas meu silêncio indicou que eu continuaria ouvindo. Como o usual, já tinha conseguido começar a faze-la se sentir irritada. Mas se eu não a irritasse, o que seria dos seus dias monótonos e depressivos? Sentada sozinha no escuro dentro daquela casa cheia de loucos?
Ela continuou:
- Amarelo me faz pensar em conchas de caracóis na areia da praia, várias delas enfileiradas assimetricamente no final da tarde. E me faz pensar em um livro de histórias que alguém me mostrou uma vez quando eu era criança. A história era algo sobre uma menina levada por um redemoinho durante a noite. É tudo que me lembro da trama. E havia uma gravura de uma garota caindo de uma escada gigante parada no ar dentro do redemoinho no chão, ela tinha um braço levantado e o semblante sofrido enquanto os espirais no solo a devoravam. O redemoinho era verde-escuro, o pijama da garota era cor-de-rosa e as paredes cinza, mas essa cena, a cena em si, me faz pensar em amarelo. E quando penso em amarelo neste escuro , o que eu penso parece se acumular bem no centro do meu rosto, entre vão dos meus olhos.
Ouvi em silêncio e secretamente me decepcionei apesar de achar intrigante a sua concepção de uma cor viajar tanto na memória. Então, neste momento, pensei no que ela havia dito há pouco, sobre suas memórias infantis estarem retornando de uma parte esquecida da mente e ocupando o lugar da lembrança de objetos que antes só existiam claramente sendo processados pela visão.Mas naquele tempo o que eu realmente gostaria de ouvir era que ela se lembrava do amarelo do meu cabelo, ou algo simples assim. Mas claro que ela não diria isso.
Ela prosseguiu:
- Era isso Stella, que você queria ouvir? A abstração que você esperava para satisfazer essa coisa surrealista que você gosta de cultivar dentro de você?
- Sim. Era exatamente isso. – Eu respondi, disfarçando meus sentimentos, pois tinha a intenção de continuar a conversa.- E o azul, você gostava de azul, não?
- Agora chega Stella. Não quero mais falar de cores. – Ela disse irritada – Não quero mais falar de nada. Ou você fica aí sentada em silêncio, ou vai embora. Tenho outras coisas para pensar, e você está me distraindo.- Ela disse enquanto deixava seu corpo cair suavemente na grama.
“Tenho outras coisas para pensar”. Ela andava falando isso com freqüência. E eu não perguntava o que era, acho tinha medo. Preferia pensar que era um pós-trauma, algo decorrente da sua condição que se tornara definitiva. Conjecturava que toda essa história de memórias e cegueira estavam aguçando seus outros sentidos e ela ainda estava se habituando a isso.
É realmente difícil, pelo menos para mim, identificar, ou pelo menos aceitar, quando as pessoas começam a ficar perturbadas. Acho que tenho a tendência de achar todo tipo de excêntricidade normal, e respeitar a loucura alheia trantado-a como mania, ou capricho.
Lembro-me de quando Alice, minha querida Alice, começou a acordar durante a noite e exigir que fossemos para um quarto diferente do que nos encontrávamos. E depois exigia que trocássemos de localidade outra vez, um, dois, três hotéis por noite. Como era, por excelência uma mulher caprichosa, eu quase não questionei seu hábito. Mal sabia eu do que ela estava fugindo. Não vou negar que bem lá no fundo eu sabia que havia algo errado. Mas preferi não lidar com isso, esperava estupidamente que as coisas se normalizassem sozinhas. Por isso quando ela se jogou da janela do 27 andar, eu entrei em estado de choque profundo. Mas eu não poderia falar disso agora. Só posso dizer que ainda sinto-me culpada.

... 3

A questão, no entanto, é que assim como Alice Nahema sempre fora caprichosa, mesmo que tivesse construído um muro ao seu redor. E como caprichosa que era, não me deixava distinguir seus verdadeiros problemas de suas manias.
Comportava-se como se todos no mundo lhe devessem algo, e expressava tal comportamento na forma de ordens, pelo menos comigo. Nahema, indiretamente dava ordens o tempo todo. Mas eu, romântica e passional que era, gostava de interpretar seu modo de ser como reflexo do seu inegável espírito de liderança e assim sendo, me sentia fascinada.
Há! Se naquela época eu pudesse saber o que era. Há, se eu soubesse que naquele dia faltava menos de um ano para tudo acontecer! Para Shainty morrer, Nahema sumir e Leah ser trancada naquele lugar horrível.
E quando Nahema foi, ela foi tão rápido que não deu tempo de nada. Tempo de perguntar, oferecer ajuda, e nem mesmo, de simplesmente me despedir.
E dela, por muito tempo eu só guardei lembranças. Em especial uma lembrança perturbadora. Sobre o que aconteceu na esquina da rua de Matilde naquele dia. Eu nunca me arrependi de nada que eu fiz perto dela, mas as lembranças, por mais agridoces que fossem, às vezes voltavam para bater na minha porta, como se dissessem que a história ainda não havia acabado. E que, de forma eu deveria saber de tudo que ela não me contou. E que eu parasse de me atrever a ignorar isso.

... 4

Começou como um leve desconforto, as pessoas diziam que era por causa do acidente e da operação, mas eu me sentia diferente. Como se tivesse recebido um chamado para a vida. Li sobre os mistérios das experiências de quase morte, mas nada parecia explicar o que eu sentia.
No dia em que a minha própria irmã foi embora eu tive um sonho. E desde então não parei de sonhar com Nahema. Com as suas coisas, com a sua casa, e até mesmo com os caracóis na areia da praia que representavam seu amarelo. Eu os via como eu tinha certeza que ela os via em sua mente. E sonhava com as páginas do livro de história, a menina sendo engolida por um redemoinho com o mais puro semblante de sofrimento. Mas sonhava com a imagem embaçada, e acordava durante a noite paralisada de medo.
Eu sabia que nós tínhamos uma conexão.
Então eu fui atrás dela. Varreria o mundo, mas tinha certeza que a encontraria, e teria uma explicação plausível para o meu desconforto, os meus sonhos e a ausência de paz. Embora sabendo que, tudo de ruim que eu sentia na pele não se comparava a falta que eu sentia dela.
Mas como terminou a minha busca, o que aconteceu antes desse dia, depois desse dia, tudo que tem haver com ela, esses pedaços se resumem a minha vida.
E eu ainda não estou pronta para contar.
E até hoje eu não sei, não tenho certeza.
Certeza de nada.

... E o que é a vida além de um emaranhado de lembranças e conhecimento?
As lembranças que seu cérebro aprisiona sem pedir consentimento. O conhecimento que é empurrado para dentro de sua garganta, mesmo quando você não tem certeza que o quer.
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Também existe o amor.
Amor que eu encontrei dentro da teoria do caos que habitava os olhos dela.
Perdi-me em meio às tempestades da sua história.
Tornei-me cinzas.
Renasci delas.
Jurei que jamais voltaria.
E se a encontrei?
Isso já é querer saber demais.
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Ass: A mesma Stella. Sempre viva.