terça-feira, 29 de setembro de 2009

Alma siamesa

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Ela ficou sabendo de uma história sobre dois amigos que planejaram se atirar da sacada de um alto hotel, de onde se podia cair direto no mar.
Quanto ao primeiro rapaz, foi bem sucedido. Mas na vez do segundo, porém, o desafortunado chocou-se contra o concreto em um erro de cálculo. Sua cabeça partiu-se ao meio e ele morreu instantâneamente.
... Sua cabeça partiu-se ao meio... e ficou tudo vermelho.
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Antes Stella imaginava o corpo por como uma casca vazia com algo branco, pálido por dentro, a alma.
Depois desse dia, porém, ela passou a imaginar a alma como algo atado ao lado do corpo. Como irmãos siameses ligados por um cordão tão fino e fácil de arrebentar!
De repente fazia sentido, porquê tudo que atingia o corpo nocauteava a alma, e tudo que sequer esbarrava na alma, refletia no corpo.
Era um pensamento clichê, mas de repente significou tanto tê-lo pensado para ela; que pelo tempo que refletiu sobre isso ela se sentiu viva outra vez.
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Ela lembrava também de outra história, a história que lhe contaram sobre o bebê que nasceu com uma aparência horrível e um defeito nos olhos.
Ela já era uma criança grande quando sua bábá havia lhe contado. E na hora lhe ocorreu a frase de uma música, que dizia:
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" Eu vou esconder você do mundo que te rejeitou,
Vou esconder você..."

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Naquele momento ela desejou de comum acordo com a sua alma siamesa ter aquele bebê ela própria. Mas ela não sabia, que a criança da qual sua babá Matilde falava, era apenas dois anos mais jovem do que ela.
E ela sabia menos ainda, que a amaria mais do que a ela própria.
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Quando era adolescente ela conheceu uma música que dizia:
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" E o céu estava todo violeta,
E eu queria outra vez, mais violeta, mais violênto..."

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E de repente ela reparava em tudo que ela violeta, detalhes de porta retratos, buganvílias na parede, chapéus de mulheres em filmes de época e a própria cor do ar de alguns dias que se passavam. As vezes, raramente, ela realmente se deparava com o céu violeta.
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E ela teve certeza que quando a tragédia aconteceu entre esses dois amigos o céu não estava violeta, mas como ela havia lido em livro certa vez:

“Estava feito com que de madrepérola"
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Stella tinha um plano secreto, onde só precisava de coragem.
Ia se perdendo aos poucos, porque seu intento demandava tempo.
E quanto menos ela tivesse,
Mas fácil seria realizá-lo.
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Ela pensava que a vida talvez fosse assim.
Se perder.
De pouco em pouco, pedaço em pedaço,
Até que um dia.... Você some.
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Ela teve um caderno com a foto de dois lábios se beijando. Em baixo estava escrita a frase:
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" O amor salva"
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Naquela época ela acreditou.
Depois essa constatação tomou a vertente extremamente oposta,
E por fim, tomou uma indiferença tremenda.
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A formula do amor Stella havia decorado com facilidade:
Para que duas pessoas sejam felizes, é irremediavelmente necessário que pelo menos uma, esteja triste em vista da união harmônica dos outros dois elementos.
Logo, dois completos = um vazio.
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Stella sabia, que era uma comodista.
Afinal, e mais fácil se perder do que se encontrar.
Mas ela ainda não estava certa, do que demandava mais coragem...
E talvez ela nunca saberia.
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Ela só sabia que tinha um plano...
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E em cada esquina,
Em cada assento de ônibus,
A cada vez que passava em frente uma casa antiga,
A cada vez que se levantava pela manhã,
... Ela deixava cair pequenas partículas dela mesma.
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Estava espalhando cinzas com antecedência...
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Ela não se importa mais se a sua história não fosse mais contada,
Afinal, o mundo está cheio delas,
E ela, um pouco cansada do mundo...
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quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Apesar de tudo...

Hoje eu fiquei sabendo de uma coisa.
Não precisa fazer sentido para ninguém.
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... Apesar de tudo meus pesames sinceros.
Sinto muito pela sua perda.
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Enfim... não sou boa nisso, mas acho que em certas situações o rancor pode ficar para trás...
Pelo menos para mim essa é uma delas.
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Esse post pode não ser lido, mas ele existe.
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Não quero comentários nesse post.
é apenas isso.
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terça-feira, 21 de julho de 2009

RENASCENCE


“Gosto de quando eu chego a casa, e não há comida, não há ninguém e não há luz”...

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Já enxerguei toda massa concreta do mundo, embora nunca soubesse como era ter uma visão limpa.

Decorei as cores, algumas texturas e alguns rostos.

Depois lampejos claros cortavam o meu redor, e logo, lampejos eram tudo que eu tinha.

Eles, por sua vez evoluíram para frestas, piscares de olhos... E depois nada.

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Não gosto de falar.

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Acho que a maioria das nossas palavras são desperdiçadas com arranjos inúteis que esquecemos segundos depois. Gosto muito menos de escrever, ficar perpetuando esses pensamentos para lembrá-los pela vida inteira. Sei que o que eu acabei de dizer parece um paradoxo, mas eu não me importo em não parecer coesa. Por isso ainda digo, que não há nada no mundo que eu rejeite de tão bom grado quanto uma poesia. Palavras soltas ao acaso que pretendem confundir e impressionar ao mesmo tempo em que almejam fazer qualquer sentido que possa se encaixar na mente de quem lê.

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A verdade é que não gosto das palavras.

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Apesar disso, eu não produzirei apenas frases secas. Quando pressionada para expressar o que deveria ser belo, eu me apego à desproporção, e esta às vezes pode soar um tanto quanto profunda.

Eu conheço essa mulher, Stella (quem não conhece, ela consegue fazer tudo parecer ser sobre ela). O modo como ela escreve me irrita. Isto não me impediu, no entanto, de guardar suas cartas. Tão poéticas que me dão dor de cabeça.

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A questão é que se agora falo sobre mim, deixo claro que não é de livre e espontânea vontade. É como se uma mente invisível me obrigasse a mapear minhas pulsões para que eu passe a existir. Mas adianto que não sou do tipo que fica revelando a alma e reticências.

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Então, se você quer saber de mim, decore em primeira instância: Eu sinto raiva. E senti raiva durante toda a minha vida. Stella dizia que a raiva era o sentido mais maravilhoso do mundo. E que foi ela que incendiou a primeira centelha elétrica que permitiu a coordenação motora no cérebro de feras como os dinossauros. Posso citar Stella muitas vezes. Mas não quer dizer que eu sinta falta dela. Eu não sinto. E não se iluda. Eu não vou contar a minha vida agora para você. Pelo menos não toda a parte que faz diferença.

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Embora não goste de sua forma de se expressar, não posso deixar de me recordar certa ocasião onde Stella me disse algo que não pôde me manter indiferente. Ela disse: Nahema, eu já me sinto apegada, a cada uma das suas tragédias. Eu respondi: Não existem tragédias na vida de ninguém. Existem fatos. E ela tornou a dizer: Existem fatos nas vidas das pessoas sem rosto, aquelas de feições iguais que nascem e morrem pelo mesmo propósito vazio. Agora... O que dizer de alguém que já nasceu predestinado a ver uma própria parte morrer? Não me pude manter indiferente e precisei lembrar desse fato,simplesmente porque ela estava errada. Mas já que não tenho escolha, vou por partes, eu chego lá.

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Lembrei disso porque o impulso invisível que me escraviza hoje quer que eu fale sobre o mesmo dia. O dia em que essa parte minha “morreu”.

Mas nos meus dias as coisas fizeram pouco sentido. Acho melhor agora seguir pela direção da desproporção do sentido cortado, picado e misturado, como eu sempre fui.

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“Acordava no meio da noite porque a claridade era inconstante. Dia e noite eram igualmente embaçados a meia luz. Descia as escadas e tropeçava na mulher caída no chão, ouvia com estridência o barulho das garrafas que caiam, queimava a sola do pé descalço na brasa no chão que queimava carpete e assoalho. Caía varias vezes por dia, mas nunca deixei ninguém perceber. Eu andava no escuro e de repente era invadida por uma rajada de claridade que me indicava a direção da casa, a acomodação dos móveis e a direção a seguir”.

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“Os lampejos vinham e eu enxergava perfeitamente embora com leves embaços. O rosto de Shainty sorrindo com seus dentes brancos enquanto tomava seu Martini na água. Os lampejos vinham e eu enxergava o cabelo louro de Stella se desfazendo em mil pedaços. Os lampejos vinham e eu enxergava cada vez menos”.

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Os médicos viviam falando algo sobre perda gradual e progressiva da visão. Na verdade... Nunca prestei tanta atenção.

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“Às vezes eu esperava o dia todo por um lampejo de luz que vinha entre enormes intervalos de tempo. Até que um dia eles pararam completamente. Quando me dei conta já estava no escuro há tanto tempo que a luz não fazia mais sentido”.

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E quando eu menos percebi, eu já sabia tudo. Eu não precisava mais da claridade.que não ia voltar .Não precisava das rajadas. Senti-me poderosa. Senti-me, finalmente... Livre.

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Então explico aqui o erro de Stella. Não sinto que nesse dia uma parte minha morreu.

Pelo contrário, sinto que nesse dia renasci.

E nessa nova casca fui embora, segura como jamais havia estado.

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Um dia eu soube que Stella me procurou até quase morrer. Mas era outro tempo.

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Agora chega. Já falei demais. Deixe-me em paz porque não quero mais lembrar. Por mim eu chamaria esse texto de “O erro de Stella”. Mas por enquanto, sou mais fraca do quem me escreve. Mas se continuar me procurando, em breve eu posso mudar a situação. E nisso... eu garanto que tenho experiência.

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“ Gosto quando eu chego em casa, e não há comida, e não há ninguém, e não há luz...”

E Nahema toma forma, cria vida e suavemente me faz medo, como se fosse me esperar no corredor as noite. Por isso a amo. E não a deixo em paz.

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quarta-feira, 15 de julho de 2009

Mais uma mulher imaginária.

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Mulheres mudam o mundo, é verdade.
São diferentes,
Valiosas.
São outra espécie.
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E é por isso que as continuo inventando.
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O nome dela não importava,
E se ela vivesse no tempo mais remoto que a sua beleza permite, tenho certeza que participaria das invasões bárbaras acometidas durante a queda do império romano.
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Ela era comandante do seu próprio exército,
Arrancava cabeças que A Negra guardava e pendurava em um colar.
Mesmo pertencendo a outro lado do espiral, era inevitável que ela se fascinasse.
O fogo queimava nas fogueiras na floresta, refletindo círculos dourados no preto absoluto dos seus olhos.
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Ela navegava pelo mar mediterrâneo; tinha origens bizantinas.
Mais adiante seu cabelo era como o céu sem estrelas fundido com o breu do mar negro.
E suas feições eram marcantes demais para legitimar seu nascimento oriental
Mesmo assim, ela era sem saber, protegida da implacável Kali.
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E a boca dela tinha gosto de carne crua,
E a pele dela tinha cheiro de sal,
E a respiração dela tinha fagulhas de metal.
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Em cada extremidade do seu corpo tinha um sol capaz de carbonizar até o brano do olho,
Em cada palavra a rouquidão rasgada de uma fenda na traquéia.
Ela era capaz de juntar multidões,
E não ser devorada por elas.
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Era capaz de existir até a eternidade.
Não era do tipo que desejava morrer,
Mas se um dia quisesse, não teria medo.
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E é claro, que o raro sorriso dela brilhava mais forte que a luz mais forte de todo o cosmos.
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terça-feira, 7 de julho de 2009

Uma semana faz...

Exatamente uma semana faz...
E a saudade continua me furando igual agulha congelada.

Alguém que mora dentro de mim falou, e eu não esqueci:
Que saudade é assim,
Dói um tempo e depois muda... se tornando até um sentimento nostalgicamente agradavél.

A minha parece que aumenta, aumenta, aumenta...
Na hora de dormir,
Na hora de olhar a rosa no meu jadim!

Mas eu to aqui acreditando, mesmo sendo a imediatista que sou,
Que vai mudar e melhorar.
Melhorar...

E que eu vou voltar a fazer meus antigos posts a qualquer momento!
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quarta-feira, 1 de julho de 2009

Aconteceu

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Hoje eu não tenho palavras para me expressar...
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Só quero agradecer ao universo pela chance de conhecê-lo,
De cuidar dele,
E pelo tempo que ele passou comigo.
Apesar da dor horrorosa de perdê-lo,
Depois de saber como era bom amá-lo.
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Te espero em outra das suas vidas Peperoni! Depois que você descançar e voltar a ser um filhote lindo como era quando eu conheci você!
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Sentirei falta de dormir a noite toda na mesma posição por medo de incomodá-lo enquanto dormia confortavel entre as minhas canelas!
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quinta-feira, 18 de junho de 2009

Estilhaço

Eu sinto uma raiva tão grande,constante e latente...

As vezes se confunde com dor,

as vezes assume a real forma de ódio puro.

Ódio do mundo como ele é,

Ódio do lugar onde eu nasci,

Ódio do que as pessoas ao meu redor pensam,

E da forma como elas agem,

Ódio de me permitir amar,

Ódio de quando eu me conformo por um momento,

Porque preciso de algo,

Porque a dor ameaça entrar...

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Eu prefiro a raiva, a fúria, um milhão de vezes do que a fragilidade.

Então espero continuar brava.

Espero continuar com raiva.

Pode ser abençoada a raiva de cada dia,com a condição que ela minimize a delicadeza.

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Alguém que eu já admirei mais do que eu deveria escreveu:

A dor é importante,

As palavras fazem diferença,

A cura é possivél...

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Eu preciso da cura. é como se durante toda a minha vida eu tivesse me intoxicado com delicadeza, fragilidade e sentimentalismo. A dor importantejá deu ( embora eu saiba que hora ou outra ela vai aparecer). Mas a questão é que quando eu paro e percebo a raiva que eu sou capaz de sentir, o quanto eu consigo odiar, eu sei que essa cura é possivél... que eu sou capaz de mudar.

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Eu não preciso da fragilidade.

Eu preciso conservar a raiva,

E quando ela vem, eu não posso permitir que vá embora de pressa.

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As vezes parece que a gente cisma.O que a gente não entende a gente atribui como não importante, errado, ignorância alheia. TODO MUNDO, inclusive eu, faz isso.E o mundo não vai mudar nessa vida minha.Espero conservar a raiva.... e mudar uma parte minha.

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É necessidade.

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Alguém que eu admirei mais do que eu deveria também escreveu:

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"From slave to the master, I become Hydra... more heads and venon! It hides, inside, ME"!

Hoje soa imensamente inspirador.
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segunda-feira, 15 de junho de 2009

... Requiem

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Ei,eu
Você sabe que eu faria quase qualquer coisa que você queira.
Todos os dias eu
Tento te dar tudo o que você precisa,
Eu sempre estarei lá por você...
Eu não acredito em tantas coisas,
Mas em você...
Eu não acredito em tantas coisas,
Mas em você...
Eu não acredito em tantas coisas,
Exceto você...
Eu acredito.
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EU AINDA ACREDITO!
Mesmo sabendo que o adeus esá mais próximo que eu gostaria.
Minha alma gêmea de outra espécie.
Acho que estou me preparando para sentir sua falta!
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E eu sempre vou pedir perdão!
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sexta-feira, 12 de junho de 2009

Uma bobagem em uma noite vazia.

Sobre Alice

Por Stella

Ela era tipo... Paixão. Pele que devora sua própria espécie. Mas se engana quem pensar que ela era só carne. Ela era sentimento, êxtase, dor... Muita dor. Dor dentro dela mesma, dor que ela causava aos outros.

Ela era capaz de implorar, de joelhos, um beijo, um carinho, um toque. Você, por sua vez, ia dando devagar, como quem não tem tanto interesse, e quando menos se dava conta, já estava você própria implorando carinhos para ela.

Mas ela era daquele tipo de pessoa que sempre se nega a ver o que está diante dos próprios olhos. Insiste no núcleo imutável do que lhe dá prazer, mas nunca analisa as variáveis do sentimento.

Era como se... Ela não amasse as pessoas que amava, ela amava a paixão que sentia. E isso fazia dela uma mulher aparentemente forte, com o ego maior que o maior dos astros do universo.

E quando ela tinha uma paixão correspondida, ela subia até as nuvens grudava tão forte que levava sua pele junto com ela. Em contrapartida quando um amor lhe faltava, ela abria uma garrafa de whisky e se destruía por dias a fio. E até nesse período ela era desejável.

Lembro-me de como ela se recusava a me dizer onde Nahema estava toda vez que eu a questionava a respeito, e em seguida falava que eu era dela. Possessiva, louca, deliciosa. Eu, com a carne fraca rendia-me, não tinha remédio.

O rosto dela... Emanava poder. Ela não era propriamente bonita, mas tinha uma sensualidade visceral. E estar nos braços dela, foi único para mim. Braços firmes, pegada forte, a voz grave falava no fundo do ouvido. E bombas nucleares explodiam na iminência de cada beijo, de cada toque.

A pele dela, era da cor que eu mais gosto. O cheiro dela, não era perfume, xampu nem sabonete. Era química. A química do corpo dela que era captada pelas células do meu corpo, os organismos se encontravam e explodiam perdendo a razão de ser de qualquer outra realidade.

Não me arrependo de um segundo passado ao lado dela, apesar da dor. Da dor que me causou nossa separação. Quando ela se atirou daquele jeito da janela, abdicando da própria vida. Foi um intercurso. Ela achava que eu não sabia, mas eu sempre tive consciência do passado dela, um longo passado, e que era por esse passado que agora ela saltava deixando-me para trás.

Vocês devem estar se perguntando sobre a Nahema e todas as declarações exasperadas que já fiz aqui. É simples saber para mim, mas não sei se é simples de entender para quem me lê.

Nahema era um pedaço meu, uma parte incompleta pela qual meu corpo e mente clamavam para aliviar uma dor crônica. Alice não... Era possível viver sem ela, mas era imensamente agradável viver COM ela. Ela podia ser saudade crônica, mas Nahema era necessidade.

O engraçado é que depois que tudo aconteceu minhas teorias a respeito de Alice só se confirmaram. Quando voltei a vê-la a primeira coisa que ela quis foi me puxar para perto dela. De alguma forma ela sabia. Ela soube assim que me viu.

E se eu fui sensata...?

Espera... um dia vocês vão ter que me ler...
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terça-feira, 2 de junho de 2009

Post Mortem

Lembranças de Shainty.



Véus de noiva sempre me interessaram. Acho que desde que me entendo por gente, me imaginava em um vestido branco incrustado de brilhantes, usando as maiores pedras que qualquer noiva já havia usado.
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Digo isso, porque quando eu era criança eu não entendia porque a minha mãe me odiava.
Quando eu cresci, entretanto, ficou transparente como o véu de noiva da seda mais fina.
Não digo transparente como o ar, porque todo sentimento que vem de coração alheio, na minha opinião, já vem turvo e deturpado, de alguma maneira embaçado, para o nosso próprio coração.
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Digo isso também, porque quando morri eu usava um véu de noiva. Um que nunca foi meu, mas o que na verdade eu sempre quis que fosse. É verdade, eu estou morta. Quando estava viva jamais teria articulação para contar o que conto agora. Acontece que hoje algo na minha consciência se iluminou, embora eu não saiba ao certo como. Agora me deixe obedecer ao impulso, deixe-me falar.
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Sinceramente eu só me lembro, durante a minha infância inteira, da minha mãe ter me pegado no colo, uma única vez.
Eu adorava estar no quarto dela quando ela não estava. Ela tinha uma grande penteadeira de madeira escura com entalhes dourados e um espelho de seis dobras moldado em arcos ovais que na época me pareciam absurdamente grandes. Na superfície da peça ficavam todos os frascos de perfume, os baús de jóias, chapéus, fios de ouro com os quais ela trançava os cabelos e todos os tipos de cosméticos de marcas caríssimas.
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Naquele tempo minha mãe ainda era vaidosa. Arrumava-se até para estar dentro de casa. Usava longas tranças muito firmes nos cabelos crespos e finos como linhas de aço emaranhadas, que lhe batiam na cintura. Uma vez eu tinha ouvido ela contar a alguém que havia mais de dez anos que ela não o cortava.
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Eu queria de todo coração ter os cabelos como os dela, ao invés disso, puxei os cabelos do meu pai, lisos e retos como um conjunto de réguas. A diferença estava na cor, os do meu pai eram louros, quase brancos, os meus, negos, com reflexos azulados quando expostos ao sol. Eu tentava trançá-los com os fios dourados como a minha mãe fazia com os dela, mas tudo que eu conseguia fazer era um emaranhado de linhas que arrebentavam meu cabelo e depois se retorciam ou quebravam, ficando inutilizáveis. Quando a minha mãe chegava e via, ela costumava arranca-los do meu cabelo com fúria, ficando a mão dela cheia do meu cabelo negro embolado com linhas douradas. Em uma dessas vezes ela me peou no colo e literalmente atirou no chão do meu quarto, trancando a porta e deixando-me de castigo.
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No breve momento em que estive em seus braços só pude reparar o contraste da minha pele com a dela. Perto da pele negra que ela tinha, a minha, parecia muito mais clara do que realmente era. As nuances não combinavam. Eu preferia, naquela época ser negra como ela. Mas nunca lhe disse isso.
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Toda a minha vida eu ouvi das pessoas que tinha olhos lindos. Enfim, eles eram exatamente da cor dos olhos da mina mãe, e isso me deixava orgulhosa apesar deles serem marrons, ordinários, comuns. A diferença, porém estava no formato. Ouvi uma vez que meus olhos, que eram grandes e puxados ao mesmo tempo, remetiam a olhos de bicho peçonhento, cheios de força e estratégia de bote, mas embora possa parecer uma comparação grotesca, eu poso garantir que foi um elogio.
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Papai sempre me dizia, me chamava de menina dos olhos, flor de camélia. Gabava-se de ter tido a filha mais linda do mundo. Eu amava quando ele chegava de viagem. Trazia tantos presentes... Depois que eu abria todos de uma vez eu pulava no colo dele e ele me enchia de mimos, eu observava então, o contraste da minha pele com a dele, agora era a minha que parecia escura demais perto da pele alva dele, mas em conjunto, era perfeito, combinava.
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Certa vez eu he pedi uma boneca que se parecesse com a minha mãe, ela, desde o inicio foi avessa à idéia. Mesmo assim ele mandou-a fazer sobre encomenda. Ela era negra e tinha os cabelos crespos trançados, usava vestidos longos e brilhantes como a minha mãe. Eu dei a ela o meu próprio nome. Carregava-a para todo canto comigo.

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É estranho que eu esteja contado tudo isso agora. Quando eu estava viva nunca imaginei que pudesse sentir tanta necessidade de falar sobre as minhas lembranças. Tanto eu quanto Nahema, nunca fomos de muitas palavras. Deve ser genético. Há sim... Eu deveria falar sobre Nahema, minha única irmã.
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Uma vez, quando eu tinha uns dezesseis anos Nahema me disse que a retórica dos meus olhos era capaz de cegar uma pessoa. Disse que talvez por me olhar todo os dias estivesse ficando cega.
Confesso que não sabia o que era retórica. Tive vergonha de perguntar tendo em vista que minha irmã caçula sabia e eu não. Mas esse sentimento passou em dois segundos.É fato que tanto eu quanto Nahema, sempre fizemos apenas o que queríamos, e não freqüentar a escola foi uma das nossas escolhas.
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Nahema sempre foi um mistério para mim. Foi expulsa do único colégio da cidade após o terceiro dia de aula quando bateu em um colega de sala e o chamou de demônio. Ela tinha quatro anos. O colégio era católico e a diretora mandou-me ligar para que minha mãe a buscasse, eu quase me engasguei de rir do acontecido, fui suspensa, e me aproveitando da situação, parei de ir à aula também.
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A verdade é que o colégio sempre foi insuportável para mim, eu odiava estudar. Eu era realmente péssima no campo intelectual, acho que por isso ninguém deu a mínima quando eu simplesmente parei de ir para a escola.
Incrivelmente as pessoas comentavam mais sobre como éramos diferentes, Nahema e eu. Costumavam nos comparar em demasia. “Como pode uma ser tão bonita e a outra tão feia?”.Era verdade. Nahema era muito feia. Não parecia desse planeta. Mas apesar de tudo teve uma pessoa no mundo que se importou com ela. Uma amiga que ela teve, uma loura chama Stella, eu acho.
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Mas tratando-se de Nahema é fato que ela sempre teve um QI acima da média, só que ninguém nunca prestou atenção nisso, além dela mesma. Ela aprendeu a ler e escrever sozinha, e só estudou o que a interessava, ás vezes ela lia livros que eu nem sabia em que idioma estavam. Ela nunca foi criança de brincar. Enquanto eu brincava com as crianças do bairro ela dizia que queria aproveitar os olhos enquanto os tinha. Nahema sempre foi uma pessoa agressiva, acho que ela aprendeu a bater antes de falar, e sempre foi mais alta do que eu. Apesar disso, ela expressava um tipo de comportamento específico que só existia dela para mim.
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Eu apanhei dela diversas vezes durante a infância. Ela era muito magra, mas tinha uma força quase incomum, era impulsiva, violência era sua resposta para a maioria os conflitos reais, que não estavam expostos em estudos, apesar de ela ser uma pessoa minuciosa, e meticulosamente organizada e limpa.
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Mas toda vez que a gente brigava, passado um tempo ela voltava, vinha no pé da minha cama pedia desculpas e dormia comigo. Eu nunca entendi isso nela. Acho que era nossa única conexão. Ela só expressava um mínimo de carinho para mim. Confesso que nunca tive a iniciativa de corresponder.
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Quando estamos vivos, raramente conhecemos nossa essência... Quando se perde a fagulha, ou sei-lá-o-que que nos caracteriza como forma de vida, de repente se sabe tudo. Ou melhor, acho que se perde a capacidade ou até, a motivação de mentir ou se enganar. As verdades se tornam claras, e dessa vez sim, claras como o ar. É verdade que eu nunca prestei mais atenção na minha irmã porque eu nunca enxerguei nada no mundo que pudesse ser mais importante do que EU. Eu que era a mais bonita, a mais rica, a mais mimada.E eu, que sabia que era podre, porque merecia que a minha mãe me odiasse.
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Papai sempre tentou me afastar de Nahema. E em certa parte eu permiti. Ele nunca gostou dela, disse uma vez que não queria que ela tivesse nascido. Falava que ela era feia, aleijada, que não era dele. Uma vez ele partiu com ela, ela tinha mais ou menos onze anos, ele voltou sozinho e só a trouxe de volta para casa seis meses depois. Eu nunca soube onde ela esteve. Não tive tanta curiosidade também.
Mas pessoalmente, eu nunca tive ódio dela, e nem muita intimidade. Uma vez na vida, apenas uma, eu lhe contei um segredo. E nunca me arrependi.
Não posso contar mais histórias dela agora. Seriam grandes demais. Digo apenas que sinceramente eu nunca a conheci de verdade, e na verdade, isso nunca me lastimou.
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- Papai me dá um véu de noiva, igual o da minha mãe?
Eu disse essa frase pela primeira vez quando tinha quatro anos. Minha mãe costumava guardar seu vestido, véu, sapatos e buquê de noiva com esmero, e como eu disse, isso sempre me fascinou. Mas ela nunca, nunca me deixava encostar nele. Só p sentir o tecido, p ver as pedras incrustadas no pano de pertinho. Depois de muito pensar, eu comecei a pedir para papai.
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Era tão simples. Aos doze anos eu tinha um closet em meu quarto só para colecionar meus vestidos de noiva. Tinha dos mais variados tecidos, de estilistas famosos, de costureiras anônimas, de outros países. Tinha uma infinidade de véus e buquês. Passava horas vestindo-os, desfilado. E toda vez que papai partia para uma viagem, eu dizia a mesma frase:
- Papai traz alguma coisa de noiva para mim?
E ele sempre trazia.
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E estranho lembrar agora em como esses vestidos ficaram amarelados e foram atacados por traças quando parei de mexer neles. Os véus soltavam filó, seda, tafetá, as pedras caras se soltavam, tudo ficava manchado de poeira, a sujeira do abandono. E eu não me importava.
Isso foi depois que papai foi embora. Não se despediu. Nunca mais voltou. E eu nunca o perdoei.
Mas também nunca me desfiz dos vestidos. Já o da minha mãe... Nesse eu pus fogo, e escondi o véu em meu quarto.
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Apesar do que acabei de contar, eu só pensei em me casar uma vez. O que obviamente não certo.
homens... Eu tive muitos. Em minha curta existência tive mais do que uma mulher solteira que vivesse trezentos anos.
Vagabunda? Era uma palavra recorrente a menção do meu nome pelas bocas alheias. Mas apesar de tudo maravilhosa era o complemento unânime de cada frase sobre mim.
Eu te amo Shainty, salvarei você. Foi a frase que mais ouvi da boca dos homens durante toda a minha vida.
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Na verdade eu me sinto bastante conformada por haver morrido antes que todos descobrissem quão doente eu estava. Na verdade eu não sabia ao certo o que eu tinha, mas eu sabia que tinha. Nahema, mesmo cega, também sabia. E ouviam-se rumores. Meu problema não era com a doença em si, mas com a degeneração física que estava a um segundo de começar a me assolar. Graças a deus que morri. Foi muito melhor assim.
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Então...O dia em que eu morri... Eu estava usando o véu roubado da minha mãe. Ela estava desmaiada na sala envolta por garrafas de bebida e cigarros semiqueimados da última vez que eu a havia visto. Nahema estava no jardim, completamente cega jogada na grama. A olhei de relance pela janela. Procurei meu isqueiro e não o encontrando, liguei o fogão para ascender o meu cigarro de cravo. Quando me abaixei sem pensar para alcançar a chama eu senti a fisgada.
Foi uma agulhada quente na nuca, depois passou direto pela garganta e no átimo de um segundo me atravessou.

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Não deu tempo de muita coisa. Perdi o peso, o cheiro, o gosto e o toque. Mas mantive a visão por apenas um milésimo, um milésimo de segundo. E eu vi... A minha cabeça no ar, caindo separada do corpo, o véu ainda imaculado sem uma gota de sangue.Isso mesmo. Eu fui assassinada. Depois se apagou. Tudo.
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Não sei onde estou.
Não sei se existo, vago, estou incrustada em uma fenda ou dentro de uma bolha de ar em algum aquário.
Onde eu estou não enxergo, não me vejo, não me sinto.
Não existe tempo, ou se existe, não aprendi como contá-lo.
Aqui não existem outras pessoas.
Tudo que sei é que de repente acontece.
Bate um estalo.
Ele queima, e as lembranças se iluminam.
E eu lembro, lembro, lembro.
Em imagens, pensamentos, mas sem nenhuma sensação, não sinto nem a minha saliva na boca.
E não sei para onde isso vai.
Não sei se repete em looping por aí.
Mas sei que não se cruza com nada alheio.
Eu não sei se um estalo desses pode acontecer outra vez.
Eu não sei nem ao menos, se aqui é claro ou escuro.

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Shainty Negirpietro foi decapitada na cozinha de sua casa aos vinte e três anos de idade.
Embora as provas nunca tenham se revelado absolutas, sua mãe foi julgada e condenada pelo crime.
Viciada em entorpecentes e mentalmente perturbada foi trancada em um hospital psiquiátrico.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Meu estômago transborda...

Na verdade hoje quebro a constante do blog e falo sobre mim.

Eu reclamo de barriga cheia. Eu não sou batalhadora. As pessoas ao meu redor fazem mito mais do que eu e mereçem coisas ótimassssssss!
Prncipalmente quem estuda na federal e não faz mais nada o resto do dia.

Então, na verdade, quando meu gato vai pra o veterinário e fica empapado em sangue com uma sonda saíndo dele, eu choro. Mas eu NÃO choro por ele. Eu uso isso de desculpa para chorar por outros prolebas da minha vida. Poque obviamente é impossivél se sofrer tanto quando vc vê um bicho que vc ama mais o que muita gente que vc conheçe sobre a eminencia da morte. ( Isso é obvio Miguel, todo mundo sabe que vc sabe tudo)

E também é verdade que fazer duas faculdades, ter um emprego ( do qual aliás eu sou uma péssima funcionária de acordo com a opinião geral), vender chocolate e estar atrás de um emprego para os fins de semana p ver se pago a conta do veterinário, e ainda tentar estar de bom humor a noite não é nada.

Lógico, eu tm sou uma pessoa nada confiável porque tive um passado muito agitado. E acordar todos os dias com vontade de não ter acordado é perfeitamemte o que me cabe.
Porque eu estou aonde não pertenço. e desde o começo fiou claro que eu não podia pedir ajuda. QUE EU NÃO PODIA NÃO CONSEGUIR, E QUE EU NÃO PODIA ACHAR NADA RUIM.

E sobre meus sonhos de viajar e conheçer o mundo.... assim como fizeram as outras pessoas da minha família por conta dos pais, na idade certa... pfffff... quem precisa disso quando se nasceu em Pedro Leopoldo e já tem muito mais do que mereçe?

Não quero ninguém passando a mão na minha cabeça.

Quero respeito.

Eu quero escrever.
Quero dormir.
Quero beber até cair.

Ficar surda muda e cega E continuar caminhando.
Por minha conta e risco.
No máxio carregando o meu gato.
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quinta-feira, 14 de maio de 2009

Epifânia

" Eu costumava pensar que eu era uma boa pessoa,
Se eu tivesse escolha, sempre escolhia o correto.
Ultimamente comecei a perceber que ...
Sou capaz de fazer o que for preciso."

Bree Van-De-Kamp

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Love Bree Ever and Ever
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domingo, 10 de maio de 2009

Domingo de Poeira.

Outro domingo de poeira.
O buraco na minha graganta continua maior que eu.
Estou sumindo dentro dele.
Tenho medo de ir por escolha.
Mas se ele simplesmente me puxasse....
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Tem muito tempo que eu não gosto de nada.
Faço o que tenho que fazer.
E entendo o oceano dentro do espírito, do qual Baudelaire falava.
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Não tem graça.
Nem postar aleatóriamente,
O portão que mal encosta na rua de poeira.
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Quando foi que a vida assumiu de vez que seria tão sem graça?
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Não tenho coragem de ir por escolha...
Mas s e ele simplesmente me puxasse.....

"Eu te odeio oceano!
Teus saltos e teus tumultos,
Meu espírito também os têm."
Baudelaire.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

ELA

Hoje eu escrevo para ELA.
Não sei como definí-la,
Não sei se sei onde ELA está.
Poderia ser particulas de pó espalhadas pelo centro da cidade, átomos do seu carbono poderiam estar nos ponteiros no relógio no pulso de alguém. Ou ainda, ELA poderia ser carne, estar neste momento, andando por alguma rua estreita em um pedaço qualquer do mundo.
Mas gosto de pensar que ELA poderia ser hoje, uma sombra. Gosto de pensar nisso porque me lembro da música:
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"Quero ser a sombra da tua mão,
A sombra da sua sombra,
A sombra do teu cão".
(A tradução tosca não importa...)
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O fato é que hoje escrevo para essa entidade, esse espírito, essa sombra, que sempre esteve comigo. Devo dar-lhe um nome? Isso eu já fiz há muito tempo.
Desde o tempo em que fomos Amazonas nas florestas da Grécia Antiga.
Fomos Mãe e Filha, Primas, Amigas, Inimigas Mortais, Amantes, Irmãs Gêmeas.
Uma de nós foi jogada aos leões selvagens no alto Império Romano.
Outra, teve o coração arrancado no Egito Antigo.
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Fomos mumificas, enterradas,cremadas,devoradas.
Fomos escrava e rainha; carcereira e prisioneira;
Fomos deusas,devotas,demonios.
Fomos fantasmas que assombraram a mesma casa.
Fomos condenadas a morte; e tivemos vidas esplêndidas.
Fomos carne e espirito que andavam juntos,
Fomos carne e espírito que andaram separados se assombrando.
Fomos para fogueira na inquisição,
Fomos condenadas a morte tantas vezes...
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Mas também tecemos seda,
Fizemos coroas de flores,
Dançamos nuas a luz da lua.
Contamos nossa foruna,
Dividimos um único pedaço de pão.
Nos ajudamos em fugas;
Pintamos telas e dividimos uma infinidade de cigarros.
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ELA teve a mesma cor de olho em todas as vidas. O mesmo tom de pele. A mesma espessura de fio de cabelo.
Nós fomos mulheres em todas as vidas, sempre orgulhosas disso, e assim sempre será.
E tem milhões de anos que isso acontece.
E todas as milhões de vezes eu tive que deixar ela ir.
E até hoje, não me conformo em ter deixado nem uma única vez.
Ainda escrevo para ela.
(Esse eu escrevi há cinco anos atrás)
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Catrina
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E você realmente tinha que me deixar.
Sinto cheiro de açúcar torrado,
Quando sinto a perda de quem nunca me pertençeu.
Quero sempre me deparar com a nuance suave dessa pele,
Com a textura delicada dessa alma que eu sempre conheci.
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Sinto que essa dor se faz necessária.
Seria-me trágico amá-la em meio a letargia da felicidade.
Seria um desperdicio exasperado do sentido de todos os meus dias, não imortalizá-la,
E fazer de você, a última.
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Eu vou colher frutas vermelhas e rosas brancas,
No dia do seu casamento.
E sorrir com a mesma tranparência do seu vestido cerimonial,
Toda vez que você disser que ama aquela que te espera no altar,
Como você jamais imaginou que seria capaz.
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Vou enfeitar seus cabelos finos com flores frescas,
E derramar lágrimas tão brancas quano seu sorriso,
A cada vez que você se for para toda a eternidade.
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E sei que vou lembrar do tempo que já foi apagado.
Do nosso mundo perdido.
E a sua silhueta se afastando, sumindo pelo caminho repleto de folhas escuras...
Assim eu sei que posso lembrar de quando aprendi a chorar,
Acima do instinto natural,
Acima de quando se nasce e descobre que o choro existe.
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Dentro do meu escuro eu guardo as duas pedras de âmbar,
Que eram seus olhos,
Temperados com mel, canela e hortelã.
Eu beijei suas feridas abertas,
Derramei pranto sobre todo o seu corpo,
E fiquei viva para morrer aos poucos.
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E quando seu corpo foi entregue a terra,
Quando se decompos e se separou,
Todas as deusas do mundo,
Voaram enlouquecidas para o subsolo,
E disputaram os átomos da sua beleza.
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O céu estava como que incrustado de cristais,
Rijos e finos como as suas feições lá em cima,
Eu te olhava de baixo com a manta pesada sobre os meus ombros,
Eu era criança mas eu sabia,
Que aquela brancura não te pertencia,
Era marfim derretido, lapidado, envernizado.
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Te vi imovél, te vi de pedra.
Eu estava no tempo em que você foi pedra.
E eu não sei como, mas sabia,
Que já haviam te arrancado um coração.
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E foi assim que a vida sucumbiu e a floresta murchou.
Foi ainda na época da inocência que tudo se perdeu.
Descobrimos um mundo apagado e escuro,
A luz era desnecessária, era incomum.
E percebemos nossas verdades de formas tão distintas...
E não podemos mais acender a luz pela primeira vez.
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Exatamente o que dói, é saber que nunca mais acenderemos a luz pela primeira vez.
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Eu ainda te darei outros nomes, Catrina.
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sexta-feira, 17 de abril de 2009

Diário Passado.

Diário passado I.


By Alice




Sou Alice.
Escrevo hoje porque uma força que me transcende me dá voz.

Desde que eu era criança, tinha dias que eu não queria acordar, mas ainda assim o sol nascia e atrapalhava os meus planos de mumificar-me no quarto escuro.
Eu sempre odiei a luz do sol. Odiava-la mais do que a minha prisão infantil.

Quanto penso naquele tempo distante me lembro constantemente de escadas, subia e descia degraus tantas vezes por dia que tinha as panturrilhas duras como as de uma criança normal jamais seriam. Lembro-me com tanta perfeição que sinto o cheiro da água doce, enlameada, no pé na escada, e da madeira meio apodrecida rangendo e tocando asperamente os meus pés descalços enquanto eu subia para casa, e descia oura vez... Tantas vezes por dia.

Quando eu era em pequena e o incomodo da claridade batia na minha janela eu consumava refugiar-me no lado escuro da mata, onde as copas das árvores faziam sombras que tingiam círculos escuros no chão. O pequeno lago de águas negras deixava o ambiente frio, e eu me recolhia arrepiada na beirada das rochas, gostando da sensação.

Alguns anos depois, eu só podia ir até lá de madrugada, fugindo do meu quarto, sorrateira como um camundongo que percorre os corredores das casas humanas à noite.
Meu pai e meus irmãos saíam para trabalhar depois que escurecia. Eu então, não tinha com que me preocupar, minha mãe abria o grande baú em seu quarto, que ela pensava que ninguém sabia que existia. Ela retirava e colocava de volta, sucessivamente, todas aquelas fotos, aquelas roupas brilhantes, aqueles objetos estranhos. Seus olhos fiavam embargados, e ela tomava pílulas. Eu, na verdade, era muito parecida com ela. O formato dos olhos, a espessura dos fios de cabelo, os lábios magros em relação aos olhos grandes. Só tinha a pele ligeiramente mais escura que a dela. Já, em compensação, eu era o total oposto do meu pai e irmãos. Não tinha um traço sequer de semelhança.


Mas estou me perdendo nas minúcias...Na verdade quem me lê precisa saber que eu não sou necessariamente uma boa escritora.
A questão é que aprendi a andar e enxergar no escuro como um gato. E aprendi a acreditar no sobrenatural quando em cima das copas das árvores, no breu total da mata, eu via aquela luz solitária piscando bem ao longe. Perto de onde as árvores despencavam e faziam o mundo ranger.


Naquele tempo, com as árvores, eu não me importava. Mas aquela luz... Indicava-me que, assim como eu suspeitava meu destino era maior do que aquele lugar.
Sair de lá, no entanto, foi quase um acaso.

Começou quando eu quebrei o nariz me chocando contra o caule de uma árvore centenária no escuro, em um momento que corria sem pensar, nesse momento senti falta dos meu bigodes de gato. Foi quando eu já não queria nem comer, nem falar, e pensava seriamente em afogar-me no rio frio. Mas esses detalhes não têm espaço no que conto agora.

De verdade o que você precisa saber é que o lugar de onde vim não tinha nada para mim. Logo, deixe-me falar o básico. Hoje tenho mais de quarenta anos, e apesar disso a juventude me fascina. Tenho olheiras muito fundas por baixo de olhos muito castanhos e adoraria ter lábios maiores. Tinjo constantemente os cabelos de dourado. Lembra-me os fios reluzentes que eu tinha quando criança, e que o tempo converteu em um marrom pálido.

Aprendi a escrever com quinze anos, e hoje, como já disse, sou uma escritora não muito talentosa, apesar de uma exímia leitora. Em compensação sou uma excelente fotografa.
Mulheres são meu tema preferido.
Gosto das poses que só elas são capazes de alinhar com perfeição, gosto do molde que só os dentes femininos podem ter, da movimentação dos longos fios dos seus cabelos.
Mas ironicamente foi um homem que me salvou. Eu tinha quatorze, treze anos? Algo por aí.
Ele era louro, mas não louro falso como eu. Era louro como...Como Stella.
Há sim... É claro que eu conheço Stella. É por causa dela que eu existo aqui. E talvez também por causa de alguém que já se chamou Christina. Mas não poderia mencioná-la agora.

Stella nunca nega sua natureza, monopoliza esse espaço como monopoliza quase todo lugar que freqüenta.
O que eu acho incrível nela é que ela consegue tornar qualquer ambiente inescrupulosamente feminino. Talvez por isso tenha me apaixonado por ela. Ela era tão jovem... Tão cheia de vida.
Mas tudo que ela sabia fazer era falar da tal Nahema.
“Alice vi a Nahema na sua revista”. “Alice onde foi que você tirou aquela foto?”. ‘ Alice, querida, por favor, me diga”.

Na verdade essa Nahema é simplesmente a mulher mais feia que eu já vi. Acho que ela tinha quase dois metros de altura. O cabelo queimado, a pele escura... Não tinha uma única curva no corpo inteiro, nem ao menos seios ela tinha. Era um saco de ossos. E ainda tinha aqueles olhos horríveis. Deformados, mal formados, estragados. E Stella ainda os achava a coisa mais maravilhosa do mundo. Sem contar que ela era dois, três anos mais jovem do que a própria Stella, que nessa época tinha vinte e dois, vonte e três anos...

Pois eu nunca disse. Nunca disse onde achei aquele demônio chamado Nahema.
E lá vou eu denovo, contando detalhes fora de hora.
Nunca me escapa da mente, o fato de que eu costumo pensar com freqüência no dia que saltei do décimo terceiro andar daquele hotel ordinário. Ao contrário do que se imagina quando se sabe de tudo, eu não pensava em Stella. Stella Dormia na cama logo atrás da janela onde eu estava de pé no parapeito.

As pessoas lá embaixo exibiam o verdadeiro caráter da humanidade. Pareciam insetos andando em linha reta rumo a um monte de nada.
Minha boca tinha gosto de choro eliminado por dias e dias a fio.
Mas aquilo não me despertou. O tormento que me movia já estava instaurado há tanto tempo que eu nem enxergava mais pequenas tristezas.
Eu pulei de uma vez.
Pensei em uma última palavra, na verdade um nome, antes do meu corpo transpassar os galhos das árvores e se chocar contra o asfalto; e a minha consciência flutuar na densidade da água até o limbo da terra, onde eu odiava aqueles inocentes.

Christina.
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Acho que eu sempre senti essa tristeza.
Sempre tive essa alma de peixe.
Essa toca na floresta.
Tristeza, sol,
Pílulas.
Tristeza,solidão,
Pílulas.
Incerteza,
Pílulas.
Juventude,
Pílulas.
Estabilidade,
Pílulas.


As copas das arvores, as plantas que morriam, os flashes de luz piscando. Madeira podre que deixa o meu pé podre. Fujo no sol de batom vermelho. Remo o barco de vestido brilhante. Vejo a minha mãe chorando e suas lágrimas não são nada para mim. O sol escurece a pele. O sol escurece a olheira. Escurece a minha vida.
Velhice, meia idade, fantasma. O sol que eu aceitei morreu. A lua que o minou morreu.
E eu fotografo, fotografo a alma, e me arrependo.
Ainda tenho tanto que falar.
Ainda tenho tanto que dizer.
Principalmente porque eu nunca tive nada meu.
E porque eu sempre quis morrer a tanto tempo.
Que não tenho certeza que já não estou morta.
E agora faço desse espaço meu.
O diário do passado é sempre meu.
Sou Alice. E agora quero falar.

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quarta-feira, 15 de abril de 2009

UM BRINDE

Hoje eu brindo a Arte Surrealista, porque cada vez que vejo uma expressão bem feita de sua razão de ser, minhas vísceras doem.
Tenho especial apreço a uma corrente que foi chamada de "logicofobista". Esses artistas acreditavam que, a arte surrealista estava intimamente ligada a verdade não palpavél do seu subconsciente. Acreditavam que, vários elementos que estão influenciando o mundo a sua volta, não são perebidos, pois estão dentro da sua alma e não inseridos no nosso cotidiano, na aparência física das pessoas, objetos e meio ambiente. E isso, faz do nosso mundo incompleto, inintelígivel em muitos aspectos, e não -pleno.

É importante não confundir a ideia dos Logicofobistas com a ideia do "mundo-arquétipo" de Platão. Na mina opinião uma coisa pouco, ou nada tem haver com a outra. Os Logicofobistas não procuram o mundo das ideias como consolo para uma realidade vazia e imperfeita. Ao meu ver, o que eles buscam é o valor do inconsciente, da alma,como expressão de plenitude.
Essa corrente de pensamento trabalha com a premissa de que os elementos do inconsiente, que chegam naturalmente até o artista por rajadas de inspiração, quando inseridos dentro de um cotidiano comum( insersão que se dá através da arte), são capazes que criar um mundo pleno, completo, inteligivél.

Na minha opinião, Remédios Varo era uma Logicofobita por excelência. E os quadros dela tocam a minha alma como se completassem essas lacunas do inconsciente que assobram os seres humanos. Sua ideia de ciclo me arrepia. Sua simbologia, seus cenários, sua delicadeza... eu as vivi em outra vida.

Brindaria Longa Vida a Rémedios se ela não estivesse morta.
Mas como acredito que levarei suas telas comigo durante toda vida, e depois de morta gravadas na minha essência, assim como a credito que tantas outras pessoas farão....
Brindo a sua imortalidade.

Não tenho "cacife" para me considerar algo tão grandioso como uma Logicofobista, só sei que a corrente de pensamento que justifica boa parte da arte surrealista me toca tanto... que dá vontade de chorar.

Não me culpem. É a lua em peixes.
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domingo, 22 de março de 2009

ÓDIO.

Ás vezes se descobre o que se odeia. E se chega a conclusão que seria melhor não haver descoberto.
Mas o ódio é involuntário assim como o amor.
Portanto sigo odiando.

... Se eu morresse agora eu não me importaria.
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sexta-feira, 20 de março de 2009

OVERDOSE DE AUGUSTO.

Augusto dos Anjos mata.
Augusto dos Anjos tem um poder.... que eu não conheço em absolutamente nenhum escritor.
Auguso dos Anjos grita, o que nós temos medo até de pensar.

Vandalismo é o be-á-bá.... Assim como, Versos íntimos, Canto íntimo, Psicologia de um Vencido, Hino à Dor, a Obscessão do Sangue... Sei todos de cor. Recito a qualquer momento.
Inclusive tenho minhas frases favoritas desses poemas, que me acompanham nos ares de ceros dias. Dias como esse.

VANDALISMO.

Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.
Como os velhos Templários medievais

Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos.

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!


Posto hoje Vandalismo, por ser o mais delicado e fatalmente doloroso, apesar de leve como a asa de uma libélula.

Posto em seguida o lado do Augusto que faz meu sangue mudar de consistencia quando eu leio. Não sei explicar como é, e aliás, hoje eu nem quero tentar. Hoje eu só quero fazer existirem esses poemas.

Se você gostou de Vandalismo, Leia Gemidos de Arte, se não gostou, leia do mesmo jeito. Do Augusto nada se perde.

GEMIDOS DE ARTE

I
Esta desilusão que me acabrunha

E mais traidora do que o foi Pilatos!
...Por causa disto, eu vivo pelos matos,
Magro, roendo a substância córnea da unha.

Tenho estremecimentos indecisos
E sinto, haurindo o tépido ar sereno,
O mesmo assombro que sentiu Parfeno
Quando arrancou os olhos de Dionisos!

Em giro e em redemoinho em mim caminham
Ríspidas mágoas estranguladoras,
Tais quais, nos fortes fulcros, as tesourasBrônzeas,
também giram e redemoinham.

Os pães - filhos legítimos dos trigos -
Nutrem a geração do Ódio e da Guerra.
Os cachorros anônimos da terra
São talvez os meus únicos amigos!

Ah! Por que desgraçada contingência
À híspida aresta sáxea áspera e abrupta
Da rocha brava, numa ininterrupta
Adesão, não aprendi minha existência?!

Por que Jeová, maior do que Laplace,
Não fez cair o túmulo de Plínio
Por sobre todo o meu raciocínio
Para que eu nunca mais raciocinasse?!

Pois minha Mãe tão cheia assim daqueles
Carinhos, com que guarda meus sapatos,
Por que me deu consciência dos meus atos
Para eu me arrepender de todos eles?!

Quisera antes, mordendo glabros talos,
Nabucodonosor ser do Pau d'Arco,
Beber a acre e estagnada água do charco,
Dormir na manjedoura com os cavalos!

Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
Dorme num leito de feridas, goza
O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
Beija a peçonha, e não se contamina!

Ser homem! escapar de ser aborto!
Sair de um ventre inchado que se anoja,
Comprar vestidos pretos numa loja
E andar de luto pelo pai que é morto!

E por trezentos e sessenta diasTrabalhar e comer!
Martírios juntos!
Alimentar-se dos irmãos defuntos,
Chupar os ossos das alimarias!

Barulho de mandíbulas e abdômens!
E vem-me com um desprezo por tudo isto
Uma vontade absurda de ser Cristo
Para sacrificar-me pelos homens!

Soberano desejo!
SoberanaAmbição de construir para o homem uma
Região, onde não cuspa língua alguma
O óleo rançoso da saliva humana!

Uma região sem nódoas e sem lixos,
Subtraída á hediondez de ínfimo casco,
Onde a forca feroz coma o carrasco
E o olho do estuprador se encha de bichos!

Outras constelações e outros espaços
Em que, no agudo grau da última crise,
O braço do ladrão se paralise
E a mão da meretriz caia aos pedaços!

II

O sol agora é de um fulgor compacto,
E eu vou andando, cheio de chamusco,
Com a flexibilidade de um molusco,
Úmido, pegajoso e untuoso ao tacto!

Reunam-se em rebelião ardente e acesa
Todas as minhas forças emotivas
E armem ciladas como cobras vivas
Para despedaçar minha tristeza!

O sol de cima espiando a flora moça
Arda, fustigue, queime, corte, morda!
...Deleito a vista na verdura gorda
Que nas hastes delgadas se balouça

Avisto o vulto das sombrias granjas
Perdidas no alto... Nos terrenos baixos,
Das laranjeiras eu admiro os cachos
E a ampla circunferência das laranjas.

Ladra furiosa a tribo dos podengos.
Olhando para as pútridas charnecas
Grita o exército avulso das marrecas
Na úmida copa dos bambus verdoengos.

Um pássaro alvo artífice da teia
De um ninho, salta, no árdego trabalho,
De árvore em árvore e de galho em galho,
Com a rapidez duma semicolcheia.

Em grandes semicírculos aduncos,
Entrançados, pelo ar, largando pêlos,
Voam á semelhança de cabelos
Os chicotes finíssimos dos juncos.

Os ventos vagabundos batem, bolem
Nas árvores. O ar cheira. A terra cheira...
E a alma dos vegetais rebenta inteira
De todos os corpúsculos do pólen.

A câmara nupcial de cada ovário
Se abre. No chão coleja a lagartixa.
Por toda a parte a seiva bruta esguicha
Num extravasamento involuntário.

Eu, depois de morrer, depois de tanta
Tristeza, quero, em vez do nome - Augusto,
Possuir aí o nome dum arbusto
Qualquer ou de qualquer obscura planta!

III

Pelo acidentadíssimo caminho
Faísca o sol. Nédios, batendo a cauda,
Urram os Dois. O céu lembra uma lauda
Do mais incorruptível pergaminho.

Uma atmosfera má de incômoda hulha
Abafa o ambiente. O aziago ar morto, a morte Fede.
O ardente calor da areia forte
Racha-me os pés como se fosse agulha.

Não sei que subterrânea e atra voz rouca,
Por saibros e por cem côncavos vales,
Como pela avenida das Mappales,
Me arrasta á casa do finado Toca!

Todas as tardes a esta casa venho.
Aqui, outrora, sem conchego nobre,
Viveu, sentiu e amou este homem pobre
Que carregava canas para o engenho!

Nos outros tempos e nas outras eras,
Quantas flores!
Agora, em vez de flores,Os musgos, como exóticos pintores,
Pintam caretas verdes nas taperas.

Na bruta dispersão de vítreos cacos,
À dura luz do sol resplandecente,
Trôpega e antiga, uma parede doente
Mostra a cara medonha dos buracos

O cupim negro broca o âmago finoDo teto.
E traça trombas de elefantes
Com as circunvoluções extravagantes
Do seu complicadíssimo intestino.

O lodo obscuro trepa-se nas portas.
Amontoadas em grossos feixes rijos,
As lagartixas, dos esconderijos,
Estão olhando aquelas coisas mortas!

Fico a pensar no Espírito disperso
Que, unindo a pedra ao gneiss e a árvore à criança,
Como um anel enorme de aliança,
Une todas as coisas do Universo!

E assim pensando,com a cabeça em brasas
Ante a fatalidade que me oprime,
Julgo ver este Espírito sublime,
Chamando-me do sol com as suas asas!

Gosto do sol ignívomo e iracundo
Como o réptil gosta quando se molha
E na atra escuridão dos ares, olha
Melancolicamente para o mundo!

Essa alegria imaterializada,
Que por vezes me absorve, é o óbolo obscuro,
É o pedaço já podre de pão duro
Que o miserável recebeu na estrada!

Não são os cinco mil milhões de francos
Que a Memanha pediu a Jules Favre...
É o dinheiro coberto de azinhavre
Que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!

Seja este sol meu último consolo;
E o espírito infeliz que em mim se encarna
Se alegre ao sol, como quem raspa a sama,
Só, com a misericórdia de um tijolo!...

Tudo enfim a mesma órbita percorre
E as bocas vão beber o mesmo leite...
A lamparina quando falta o azeite
Morre, da mesma forma que o homem morre.

Súbito, arrebentando a horrenda calma,
Grito, e se grito é para que meu grito
Seja a revelação deste Infinito
Que eu trago encarcerado na minh'alma!

Sol brasileiro! queima-me os destroços!
Quero assistir, aqui, sem pai que me ame,
De pé, à luz da consciência infame
À carbonização dos próprios ossos!
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