sexta-feira, 17 de abril de 2009

Diário Passado.

Diário passado I.


By Alice




Sou Alice.
Escrevo hoje porque uma força que me transcende me dá voz.

Desde que eu era criança, tinha dias que eu não queria acordar, mas ainda assim o sol nascia e atrapalhava os meus planos de mumificar-me no quarto escuro.
Eu sempre odiei a luz do sol. Odiava-la mais do que a minha prisão infantil.

Quanto penso naquele tempo distante me lembro constantemente de escadas, subia e descia degraus tantas vezes por dia que tinha as panturrilhas duras como as de uma criança normal jamais seriam. Lembro-me com tanta perfeição que sinto o cheiro da água doce, enlameada, no pé na escada, e da madeira meio apodrecida rangendo e tocando asperamente os meus pés descalços enquanto eu subia para casa, e descia oura vez... Tantas vezes por dia.

Quando eu era em pequena e o incomodo da claridade batia na minha janela eu consumava refugiar-me no lado escuro da mata, onde as copas das árvores faziam sombras que tingiam círculos escuros no chão. O pequeno lago de águas negras deixava o ambiente frio, e eu me recolhia arrepiada na beirada das rochas, gostando da sensação.

Alguns anos depois, eu só podia ir até lá de madrugada, fugindo do meu quarto, sorrateira como um camundongo que percorre os corredores das casas humanas à noite.
Meu pai e meus irmãos saíam para trabalhar depois que escurecia. Eu então, não tinha com que me preocupar, minha mãe abria o grande baú em seu quarto, que ela pensava que ninguém sabia que existia. Ela retirava e colocava de volta, sucessivamente, todas aquelas fotos, aquelas roupas brilhantes, aqueles objetos estranhos. Seus olhos fiavam embargados, e ela tomava pílulas. Eu, na verdade, era muito parecida com ela. O formato dos olhos, a espessura dos fios de cabelo, os lábios magros em relação aos olhos grandes. Só tinha a pele ligeiramente mais escura que a dela. Já, em compensação, eu era o total oposto do meu pai e irmãos. Não tinha um traço sequer de semelhança.


Mas estou me perdendo nas minúcias...Na verdade quem me lê precisa saber que eu não sou necessariamente uma boa escritora.
A questão é que aprendi a andar e enxergar no escuro como um gato. E aprendi a acreditar no sobrenatural quando em cima das copas das árvores, no breu total da mata, eu via aquela luz solitária piscando bem ao longe. Perto de onde as árvores despencavam e faziam o mundo ranger.


Naquele tempo, com as árvores, eu não me importava. Mas aquela luz... Indicava-me que, assim como eu suspeitava meu destino era maior do que aquele lugar.
Sair de lá, no entanto, foi quase um acaso.

Começou quando eu quebrei o nariz me chocando contra o caule de uma árvore centenária no escuro, em um momento que corria sem pensar, nesse momento senti falta dos meu bigodes de gato. Foi quando eu já não queria nem comer, nem falar, e pensava seriamente em afogar-me no rio frio. Mas esses detalhes não têm espaço no que conto agora.

De verdade o que você precisa saber é que o lugar de onde vim não tinha nada para mim. Logo, deixe-me falar o básico. Hoje tenho mais de quarenta anos, e apesar disso a juventude me fascina. Tenho olheiras muito fundas por baixo de olhos muito castanhos e adoraria ter lábios maiores. Tinjo constantemente os cabelos de dourado. Lembra-me os fios reluzentes que eu tinha quando criança, e que o tempo converteu em um marrom pálido.

Aprendi a escrever com quinze anos, e hoje, como já disse, sou uma escritora não muito talentosa, apesar de uma exímia leitora. Em compensação sou uma excelente fotografa.
Mulheres são meu tema preferido.
Gosto das poses que só elas são capazes de alinhar com perfeição, gosto do molde que só os dentes femininos podem ter, da movimentação dos longos fios dos seus cabelos.
Mas ironicamente foi um homem que me salvou. Eu tinha quatorze, treze anos? Algo por aí.
Ele era louro, mas não louro falso como eu. Era louro como...Como Stella.
Há sim... É claro que eu conheço Stella. É por causa dela que eu existo aqui. E talvez também por causa de alguém que já se chamou Christina. Mas não poderia mencioná-la agora.

Stella nunca nega sua natureza, monopoliza esse espaço como monopoliza quase todo lugar que freqüenta.
O que eu acho incrível nela é que ela consegue tornar qualquer ambiente inescrupulosamente feminino. Talvez por isso tenha me apaixonado por ela. Ela era tão jovem... Tão cheia de vida.
Mas tudo que ela sabia fazer era falar da tal Nahema.
“Alice vi a Nahema na sua revista”. “Alice onde foi que você tirou aquela foto?”. ‘ Alice, querida, por favor, me diga”.

Na verdade essa Nahema é simplesmente a mulher mais feia que eu já vi. Acho que ela tinha quase dois metros de altura. O cabelo queimado, a pele escura... Não tinha uma única curva no corpo inteiro, nem ao menos seios ela tinha. Era um saco de ossos. E ainda tinha aqueles olhos horríveis. Deformados, mal formados, estragados. E Stella ainda os achava a coisa mais maravilhosa do mundo. Sem contar que ela era dois, três anos mais jovem do que a própria Stella, que nessa época tinha vinte e dois, vonte e três anos...

Pois eu nunca disse. Nunca disse onde achei aquele demônio chamado Nahema.
E lá vou eu denovo, contando detalhes fora de hora.
Nunca me escapa da mente, o fato de que eu costumo pensar com freqüência no dia que saltei do décimo terceiro andar daquele hotel ordinário. Ao contrário do que se imagina quando se sabe de tudo, eu não pensava em Stella. Stella Dormia na cama logo atrás da janela onde eu estava de pé no parapeito.

As pessoas lá embaixo exibiam o verdadeiro caráter da humanidade. Pareciam insetos andando em linha reta rumo a um monte de nada.
Minha boca tinha gosto de choro eliminado por dias e dias a fio.
Mas aquilo não me despertou. O tormento que me movia já estava instaurado há tanto tempo que eu nem enxergava mais pequenas tristezas.
Eu pulei de uma vez.
Pensei em uma última palavra, na verdade um nome, antes do meu corpo transpassar os galhos das árvores e se chocar contra o asfalto; e a minha consciência flutuar na densidade da água até o limbo da terra, onde eu odiava aqueles inocentes.

Christina.
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Acho que eu sempre senti essa tristeza.
Sempre tive essa alma de peixe.
Essa toca na floresta.
Tristeza, sol,
Pílulas.
Tristeza,solidão,
Pílulas.
Incerteza,
Pílulas.
Juventude,
Pílulas.
Estabilidade,
Pílulas.


As copas das arvores, as plantas que morriam, os flashes de luz piscando. Madeira podre que deixa o meu pé podre. Fujo no sol de batom vermelho. Remo o barco de vestido brilhante. Vejo a minha mãe chorando e suas lágrimas não são nada para mim. O sol escurece a pele. O sol escurece a olheira. Escurece a minha vida.
Velhice, meia idade, fantasma. O sol que eu aceitei morreu. A lua que o minou morreu.
E eu fotografo, fotografo a alma, e me arrependo.
Ainda tenho tanto que falar.
Ainda tenho tanto que dizer.
Principalmente porque eu nunca tive nada meu.
E porque eu sempre quis morrer a tanto tempo.
Que não tenho certeza que já não estou morta.
E agora faço desse espaço meu.
O diário do passado é sempre meu.
Sou Alice. E agora quero falar.

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quarta-feira, 15 de abril de 2009

UM BRINDE

Hoje eu brindo a Arte Surrealista, porque cada vez que vejo uma expressão bem feita de sua razão de ser, minhas vísceras doem.
Tenho especial apreço a uma corrente que foi chamada de "logicofobista". Esses artistas acreditavam que, a arte surrealista estava intimamente ligada a verdade não palpavél do seu subconsciente. Acreditavam que, vários elementos que estão influenciando o mundo a sua volta, não são perebidos, pois estão dentro da sua alma e não inseridos no nosso cotidiano, na aparência física das pessoas, objetos e meio ambiente. E isso, faz do nosso mundo incompleto, inintelígivel em muitos aspectos, e não -pleno.

É importante não confundir a ideia dos Logicofobistas com a ideia do "mundo-arquétipo" de Platão. Na mina opinião uma coisa pouco, ou nada tem haver com a outra. Os Logicofobistas não procuram o mundo das ideias como consolo para uma realidade vazia e imperfeita. Ao meu ver, o que eles buscam é o valor do inconsciente, da alma,como expressão de plenitude.
Essa corrente de pensamento trabalha com a premissa de que os elementos do inconsiente, que chegam naturalmente até o artista por rajadas de inspiração, quando inseridos dentro de um cotidiano comum( insersão que se dá através da arte), são capazes que criar um mundo pleno, completo, inteligivél.

Na minha opinião, Remédios Varo era uma Logicofobita por excelência. E os quadros dela tocam a minha alma como se completassem essas lacunas do inconsciente que assobram os seres humanos. Sua ideia de ciclo me arrepia. Sua simbologia, seus cenários, sua delicadeza... eu as vivi em outra vida.

Brindaria Longa Vida a Rémedios se ela não estivesse morta.
Mas como acredito que levarei suas telas comigo durante toda vida, e depois de morta gravadas na minha essência, assim como a credito que tantas outras pessoas farão....
Brindo a sua imortalidade.

Não tenho "cacife" para me considerar algo tão grandioso como uma Logicofobista, só sei que a corrente de pensamento que justifica boa parte da arte surrealista me toca tanto... que dá vontade de chorar.

Não me culpem. É a lua em peixes.
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