quinta-feira, 12 de março de 2009

Tristessa

... Ela percorreu muitos quilômetros do centro da cidade até a alameda dos casarões.
Cada passo um sol,
Cada respiração, um clarão que a queimava até os ossos.
Queimava também, como pontadas de alfinetes congelados o medo de não chegar a tempo.

Pela manhã ela havia calçado seus sapatos de festa.
Azuis com saltos mínimos e pequenos brilhos cintilantes.
Passou o batom de Perpétua, vermelho escuro como sangue de gente.E firmou os cabelos ondulados em um rabo de cavalo no topo da cabeça.

Ela passou pela longa escada de degraus altos que substituía o passeio na rua das flores.
Cada pulo esfarelava seu cabelo louro como poeira.
Passou pelas vielas estreitas da rua mofada,
Sentiu cheiro de manga queimada no chão abandonado dos quintais das casas vazias condenadas.
Ouviu o canto estridente do violão de sete cordas que soava da casa de Matilde.A única corrente de energia que permitia que aquele lugar respirasse.

Quando entrou na alameda dos casarões o ar era doloroso como os machucados que sangravam nos seus pés.
Ela lembrava do laranja-fogo, quase florescente das mangas no chão, como se fosse a cor da sua própria alma.
Embora tivesse fome, ela não se importaria se nunca mais comesse nada na vida, contando que chegasse a tempo no casarão número nove.

Em frente o portão ela foi endurecendo suavemente.
Petrificava-se como se a casa tivesse uma parte dos poderes da górgone medusa e a encarasse.
Não tinha ninguém. A casa parecia vazia.
Ela então, ficou meio escondida atrás dos arbustos olhando para cima, onde tudo que podia observar eram as torres octogonais que se erguiam para o céu.
Elas a fizeram lembrar da História da Ilha das agulhas negras, um conto árabe que Matilde lhe contara certa vez, e que a impressionara muito.

O sol abaixava no horizonte e cobria todas as coisas com um véu escuro,
Mais ou menos a representação daquela tristeza que te envolve de repente,
E quando você percebe está completamente dominado, se perguntado de onde ela veio.
Mas o que ela se perguntava, na verdade, era porque não tinha dúvidas de que deveria estar ali.

Sentada no passeio, ela tinha um buraco na garganta maior do que ela própria.
A dor nos pés parecia agradável mediante ao mundo que se esvaía na sua traquéia....

Então foi quando aconteceu.
Um caro negro parou na porta do casarão.
Primeiro veio aquele homem, alto e louro cercado por um séqüito de empregadas com malas.
Depois veio a mulher negra e a menina bonita.Essas pessoas, porém, não passaram de borrões para Stella.
Por último veio a menina alta. Ela era magra, reta e alta como uma tábua.
Sua visão clareou.


Nahema tinha nove anos, assim como Stella.
Era a menina dos olhos de neve.
Tinha algo extremamente antigo emoldurado no rosto.Algo, como que mumificado, do tempo do caos primordial até a nossa atualidade cinza.
Uma lembrança arcaica nebulosa, empoeirada, quase bruta, da qual Stella sentia uma saudade tão infinita que doía cronicamente nas vísceras.
Seu coração batia como coração de rato.
Sua mente oscilava em nuances desordenadas, mas sua boca emudeceu.
Ela ainda era de pedra. Ela não foi vista.

Por isso quando o carro partiu, ela estava de pé, parada entre os arbustos.
Chorava sem saber por que, suas vísceras pareciam se liquidificar dentro dela.
Ela só havia visto aquela menina uma vez e agora era o fim do mundo vê-la ir embora.

Stella faria qualquer coisa para ter ido também.
Ela pensou em se converter em um animal, um fantasma, uma sombra.
Mas o mais doloroso é que ela continuaria sendo Stella.
E ela nunca mais olharia, por mais de um segundo, as roseiras do seu jardim.
E ela nunca mais olharia pela janela quando chovesse.
Nunca mais pararia de pensar em tempestades de neve.

Lembrar-se de algo sem saber o que é,
Enquanto via quem amava, sem saber porque, ir embora,
Era confuso, mas doloroso a ponto dela não se importar em ser atacada por um enxame de abelhas venenosas naquele exato momento; talvez até de desejar o ataque.

...

... E mais tarde, muitos anos depois, ela não sabia que diria para Nahema:

“Eu sempre soube, que passei minha vida inteira procurando por você”.

E que Nahema, infeliz como havia estado por quase toda a sua vida, responderia:

“Sinto muito, mas eu tenho que ir”.

...

Eu não acredito que ninguém seja inteiro por si só.
Que ninguém seja completo por si só.
Eu acredito, por outro lado, que é possível, viver incompleto, se acostumar a isso.
Mas a plenitude...
Vem de uma fonte completamente humana.
Vem de unificação.
Mas vai saber em quantas vidas, e em que tempo e em quantas partes, perdemos nossos pedaços;
Vai saber, em quantas pares, ou em quantas vidas, os reencontraremos.E sabe-se muito menos, se eles ao menos se lembrarão de nós.

...Só podemos, inclusive acreditar que eles existem,
Quando sentimos a falta que eles fazem....


5 comentários:

Liv Marie disse...

que lindooo!!

gostei mais desse do que de todos até então.

Inevitable disse...

Jura? Me surpreendeu! =)

Três disse...

Putz, vc escreve bem pra cacilda!
Eu quase chorei,olho cheio d'agua!

amo você
no matter what
só pq vc é máquina de gotozêra
senão...

Unknown disse...

Lindo.

Gueibs ManoMona disse...

E é nisso que a gente se apega!
Vamos acreditando.

Você consegue fazer com palavras o que o Luiz faz com as notas. Como simples mortal que sou fico a admirar o dom de pessoas que Amo!